
O Corpo.
Mesmo que carreguemos agora uma idéia cotidiana de mudança, de história, de evolução, certos olhos enganam e fazem permanecer e justificar naturalizações. Nos é muito difícil aceitar uma historicidade radical (mesmo essa sendo uma “invenção” tipicamente ocidental), para nós a mudança é sempre em parte, podendo apenas se referir à aquilo que achamos que se modifica, pode ou deve se modificar (o aceitável da modificação e da historicidade).
O corpo, para nossa visão de mundo, agora “pode” se modificar em milhões de anos, mas nunca em décadas, em anos, em horas, e se modificar tão radicalmente que não seja mais sedutor, que nos pareça outro corpo (a não ser o corpo doente, o corpo mutilado). A modificação é sempre possível, sempre natural e lentamente. Ou melhor, é sempre a matéria do corpo que se modifica (o corpo como matéria terrestre) num tempo lento ou a moda sobre o corpo que vai e vem, nunca um corpo alienígena, um outro-corpo (a não ser o corpo teratológico) colado ao nosso, também nosso corpo.
E não nos referimos àquele corpo de outras culturas que fotografamos como aos animais, por curiosidade, por espírito científico, objetivamente, por prazer, e que trazem sempre a marca do extremamente outro, a experiência do opaco, do indizível, do incansável, que nada dizem a não ser enquanto momento de estranhice, como nas chapas de Edward S. Curtis de Apaches, Cheyennes, Sioux e outros fósseis de “nativos norte-americanos”: fotografados todos como animais ou com os olhos mortos de quem expressa uma coisa, principalmente por que esses corpos de “nativos” se recusam a falar, se recusam olhar, se recusam a participar e se tornarem um corpo estranho a si mesmo, se recusam a se tornarem imagem, a se tornarem públicas, a se tornarem movimento: são apenas manequins “vestidos de índio”: estão nas brechas da nossa concepção de tempo: antes dos nossos olhos e bem depois da nossa vivência: são seres de museu, fantoches de carnaval: é apenas a doxa que nos faz dizer a alteridade mas essa pretensa alteridade é somente a brecha de uma diferença, superfície de uma máscara, percepção de uma outra “fantasia”, de uma outra moda.
São corpos fechados, aqueles que não enfrentaram todas as tempestades da imagem e do movimento, todos os processos de exposição e do tornar-se público, que olham com desconfiança ou que se recusam a olhar, mantendo somente o olho aberto para o olho não sabido da câmara, que será o nosso. Esse corpo não se entrega, sorri, quando sorri (e o riso parece sempre falso, quase um esgar: de nojo?) apenas para os que estão fotografando e não para o futuro, para outro tempo, para outros que não estão ali. Não são corpos dispostos (indispostos?) e a disposição, se existe, é sempre forçada ou estranha; eles não se abrem ao fluxo do tempo, não esperam se ver no futuro nem que aquele momento presente, o momento da foto, se torne passado: são seres fora da história, seres fora da vivência daquilo que cria a idéia de história, o que faz com que ela exista para nós, seres coisificados, jogados num rio total. Para nós, seres da história, são falsos corpos esses que não se entregam ao tempo, não comungam com a entrega do olhar. Resistem com um orgulho que perdemos a muito tempo, uma altivez que já não sabemos reconhecer.
Os corpos abertos são corpos na história. Estão abertos como os corpos dos atores para as câmeras, conscientes da sua estampa pública, da sua permanência e da sua provisoriedade, cônscios da temporalidade tripartida e física da história: o tempo do trabalho marcando o corpo e a alma do corpo, a visão do corpo e o corpo da visão: o sorriso rindo para sempre, aos presentes e aos futuros, verdadeiro riso da e na história: todo fotografado de corpo aberto é um eterno Clark Gable no fluxo da luz, sem sombra, inteiro, todo dado, entregue. São os corpos depois da longa experiência da fotografia e do cinema, da exposição e vivência pública desse novo, ou melhor, desse outro corpo. É a diferença entre Robert Mapplethorpe ou Avedon e os nus do final do século XIX (nem mesmo as prostitutas nuas se entregam ao olhar, ao outro em outro tempo: são prostitutas apenas para os olhos do seu tempo, para os corpos do seu tempo: não são mulheres nuas: nem mesmo Sarah Bernhardt, nua ou vestida, consegue sair de sua pose amortalhada num tempo, estranhamente ainda fechada ao olhar projetivo do olhar fotográfico).
Os corpos fechados são corpos naturais, enquanto os corpos abertos são corpos da história: os naturais são históricos, relutam em se tornarem expostos e disponíveis, parecem velhos e estranhos, como se nossos avós estivessem nus, são outros corpos, mas esses não foram o nosso corpo anterior: eles nascem de uma ruptura, de uma mutação; os históricos são naturais, se entregam facilmente, são livres, são normais, são próximos: é o nosso corpo, corpo objetificado que não nos pertence mais: são corpos dos outros, corpos da imagem, do trabalho e do movimento, corpos públicos, corpos pornográficos por se exporem até a náusea: são presas do tempo.
O que era pornográfico ou erótico para os que olhavam esses corpos fechados, fotografados nus, para nós é somente estranheza: não se denunciam mais como pornografia: são frágeis, desprotegidos, são todos corpos de criança, se bem que o corpo nu das crianças, para os olhos do nosso corpo canibal, é somente mais um corpo, um corpo em miniatura, tão degustável quanto sua imagem aumentada, corpo que se vende e se mostra, demonstrando que já não há distinção real entre um corpo infantil e um corpo adulto: o corpo aberto conhece poucos limites e nem a idade nem a aparência são-lhe limites respeitados: fora dos corpos do poder o corpo aberto, corpo do poder por excelência, não reconhece horizonte que não possa ser incluído, degustado.
Nosso reconhecimento é dolorosamente genérico, saindo fora de toda determinação e proximidade. Aos nossos olhos esses corpos não se erotizam: são corpos, bocas, olhos, peitos, sexos, coxas, cabelos: mas esse genérico não é suficiente para chegar até a nós nem se dizer: ele não se singulariza nem se aproxima: não se torna nem familiar nem degustável: ele é de outro sabor: seu saber não nos sabe: é uma carne-não-cozida-para-nós: não sabemos devora-la, nem pelos olhos nem pelo corpo, pois não há sequer desejo ou desejo de devorar: não pede nossos líquidos: são corpos terrestres, somente outro corpo.
Nosso reconhecimento é dolorosamente genérico, saindo fora de toda determinação e proximidade. Aos nossos olhos esses corpos não se erotizam: são corpos, bocas, olhos, peitos, sexos, coxas, cabelos: mas esse genérico não é suficiente para chegar até a nós nem se dizer: ele não se singulariza nem se aproxima: não se torna nem familiar nem degustável: ele é de outro sabor: seu saber não nos sabe: é uma carne-não-cozida-para-nós: não sabemos devora-la, nem pelos olhos nem pelo corpo, pois não há sequer desejo ou desejo de devorar: não pede nossos líquidos: são corpos terrestres, somente outro corpo.
No entanto, o corpo aberto tende a aceitar o genérico como familiar, sem distinguir e sem ver corpos abertos ou fechados: a naturalização genérica do mundo do capital e o olhar naturalizado os torna iguais e desejáveis: nosso olhar pornográfico tornou-se onívoro: temos agora o mesmo olhar fálico que é necessário ter para conviver com um mundo de exclusivamente de objetos: devoramos tudo, desejamos tudo: na “rede tudo é peixe”: mas esse olhar onívoro ainda recua diante de certas imagens mesmo tendendo a incluí-las em sua órbita.
O corpo aberto não significa, ele não é ponte ligando nada nem sentindo necessidade de ligar, ele não sabe que precisa ligar para se tornar um corpo; não é encontro porque não dialoga, ele se apresenta, apresenta e permanece, tornando-se para o outro, com o tempo, cancerígeno e doloroso, antagonismo que grita sua indisposição de tanta disposição castrada: dois corpos abertos se devoram e se maltratam desde os olhos, desde o olhar; é uma disponibilidade que apenas instigada é que se normatiza e se diz: é corpo prostituído por fundamento e razão social, não consegue se definir ou se propor: ele apenas se coloca no mercado: para o outro corpo.
Universalizando essa indefinição não consegue ver senão a si mesmo. O corpo fechado sabia a quem se dar, como se dar, quando se dar e porque se dava; o corpo aberto não pressupõe alguém, normas, tempo, tradição: ele é de todos, sem normas, a qualquer hora e por nada. A disponibilidade e a auto-disposição desse corpo se vender no mercado é agora única na ocidentalidade: jamais nos dispomos tanto a nos vender e consumir dessa maneira.
Universalizando essa indefinição não consegue ver senão a si mesmo. O corpo fechado sabia a quem se dar, como se dar, quando se dar e porque se dava; o corpo aberto não pressupõe alguém, normas, tempo, tradição: ele é de todos, sem normas, a qualquer hora e por nada. A disponibilidade e a auto-disposição desse corpo se vender no mercado é agora única na ocidentalidade: jamais nos dispomos tanto a nos vender e consumir dessa maneira.
Esse corpo não consegue sequer se decidir se é corpo puramente material ou se é ainda atravessado por sonhos: não aceita sua metafísica e no entanto vive a recordá-la: como sua integração social, auto apresentação e vivência são problemáticas (fazendo-se ao nível do objeto, da venda e do consumo, jamais ao nível da comunidade e do outro), é um shopping center ambulante: transparente, cheiroso, movimentado e profundamente falso: superfície de superfície: somente apresentação: armadilha de um desejo sem razão. Mas esse corpo aberto não é hegemônico nem exclusivo na ocidentalidade. Outros corpos convivem, nos atravessam os caminhos, resistem, dizem-se, proclamam-se.